terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Rumo ao Alqueva: entre cafés e uma surpresa

Gostamos de parar para café. É pelo hábito do café, mas, quase inconscientemente, é também uma forma observar e sentir o local. Ver e ouvir as pessoas que ali fazem rotina apura-nos a sensibilidade sobre os traços locais. Na paragem para café constrói-se a memória futura do sítio, através dos pequenos pormenores que se observa, ouve e cheira. Pequenas conversas com curiosos por vezes abrem abrem um mundo de história. Parar para café é uma forma de, em 5 minutos, perscrutar o passado e a envolvência do sítio por onde se passa.

Não sei explicar bem, mas estas impressões recolhidas na paragem para café parecem ser mais apuradas quando se vai de bicicleta. Acho que por um lado tem a ver com transição mais directa do veículo em que nos deslocamos para o local onde vamos parar. Ao chegar de bicicleta, já estamos a ouvir, cheirar e ver o local, sem obstáculos. A possibilidade de estacionar o veículo mesmo em frente ao local onde vamos parar (como acontece com os carros, mas só nos filmes) também ajuda a essa transição mais suave. A redoma do automóvel coloca uma barreira a estas sensações iniciais, e em muitos locais comporta a ansiedade da procura de estacionamento. Por estes motivos, diria que a bicicleta enaltece ainda mais a experiência do parar para café.

Depois de levantarmos o acampamento, pedalámos 5 km até Oriola, uma simpática aldeia na margem da barragem do Alvito. Fomos ver o local, fazer compras, e beber café. Parámos num supermercado daqueles que têm um pouco de tudo, desde objetos de decoração para a casa que parecem ter estado a decorar o supermercado ao longo da última era, até um balcão e mesas para café à saída. O senhor do estabelecimento fazia tudo, entre a caixa do supermercado, serviço no balcão dos queijos e enchidos, e atendimento no café. Era uma manhã de Sábado de Verão e havia clientela para os vários serviços. Enquanto esperávamos, aproveitámos para perscrutar o local. O Vasco, lá fora no Croozer, aproveitava para pôr o sono em dia. Apesar de não termos visibilidade direta para as bicicletas, a presença constante dos locais deu-nos confiança suficiente para o deixar lá fora.

Depois pusémo-nos a caminho de Portel, a 14 km, onde iríamos almoçar. É mais uma vila alentejana bonita, onde demos uma volta, visitámos o castelo, o museu local e parámos para mais um café e bolos locais.

Museu da Freguesia - Portel
Castelo de Portel

Faltavam mais 20 km até à Amieira, uma aldeia encostada ao Alqueva que por acaso também é o principal ponto de turismo da grande albufeira. Não ia ser uma viagem completamente tranquila, tendo em conta o tempo que tínhamos para encontrar um local para dormir antes do anoitecer. Percorrê-mo-lo de uma vez. Fazer este tipo de distância a uma média de 15 km/h nem sempre era fácil por causa da possibilidade dos miúdos se aborrecerem ou terem outras necessidades. Mas tudo se tornava mais simples quando eles adormeciam, o que normalmente é trigo limpo quando são embalados pelo Croozer. Eles adormecerem em viagem é um dois em um: uma viagem tranquila para os pais, e uma sesta repousante para os filhos.


Estrada R384- à sombra a descansar um pouco da subida...

Chegados à Amieira, parámos para comer e inquirir os locais acerca de sítios para pernoitar. Fomos tratados como reis pelo dono do estabelecimento, apesar de não ter propriamente coisas para lanchar, apenas "petiscos". Enquanto o Manuel e o Vasco comiam avidamente um prato de caracóis, um senhor da terra de ar muito humilde meteu conversa e acabou por nos ir contando uma versão muito interessante sobre os traços da Amieira, o seu povo, e o impacte que teve a barragem do Alqueva. Ao perguntar-lhe por um caminho em particular, explicou-me que poderia ter cercas pelo caminho a tapá-lo, mas que ninguém levava a mal se as abrirmos para passar. Soubéssemos isto antes, e talvez tivéssemos mesmo atravessado aquelas cercas da Ribeira de S. Brissos!

Disseram-nos que lá para baixo, junto à água, por vezes havia malta a acampar, e fomos a isso. Estávamos cansados e era perto do anoitecer. A busca de um local para ficar foi um pouco stressante. Demos algumas voltas à procura, e a partir de uma ponte vimos um local que parecia interessante numa das línguas de terra que invadem a água. Quando fomos para essa zona, ao longo de caminhos de terra em más condições, estava difícil de encontrar o local desejado, e os outros não pareciam tão apelativos. Os miúdos estavam muito cansados e queriam parar, até que decidimos deixá-los ir tomar banho no rio enquanto eu prossegui a procura. Finalmente encontrei e, apesar da fadiga, decidimos mudar de local. O sítio era perfeito, e só nos apercebemos completamente disso depois de instalados. Uma praia com pouca inclinação, bom piso para a tenda e uma visão muito bonita. Era tão bom, mas ao mesmo tempo muito diferente, do local da noite anterior na barragem do Alvito. E desta vez foi o nosso hotel de 6 estrelas tinha mesmo estacionamento à porta, porque foi fácil levar as bicicletas até à margem. Como no dia anterior, o Manuel e o Vasco brincavam junto à água ao mesmo tempo que eu e a Filipa preparávamos as coisas.

Na albufeira do Alqueva, próximo da Amieira

Depois do jantar, mesmo antes de ir para a tenda, tivemos uma visita surpreendente. O terreno para além da área onde a água chega é totalmente preenchido por uma vegetação loura e suave que dá quase pela cintura, e que o luar iluminava ligeiramente. Enquanto conversava com o Manuel, a Filipa diz-me assustada que havia uns olhos no meio da vegetação. Primeiro olhei e pensei que fosse impressão dela porque não vi nada, mas passado um pouco vejo mesmo algo a mexer entre a vegetação, por trás das bicicletas. Era um corpo delgado com quatro patas... "É um gato!" A Filipa e o seu medo compulsivo de animais correram com o Vasco para dentro da tenda. "Saiam daí!!" "Mas é só um gato!" Observei melhor... O focinho que tinha uns olhos brilhantes a olhar para nós, parecia afinal ter a forma de outro animal. "Afinal é um cão..." Naquele instante, com o Manuel ao meu lado, meio entusiasmado e meio indeciso em alinhar pelo o ar despreocupado do pai ou o medo da mãe, tive um certo receio. O que faria ali um cão? Atrás dele virá uma matilha? Apontei-lhe a lanterna. Tinha uma cauda gigante e peluda e orelhas grandes. Era uma raposa!

Sempre ouvi dizer que as raposas eram matreiras e atrevidas. Esta aproximava-se de nós aos esses, entre a folhagem, até que chegou muito perto de nós. O Manuel eu estávamos excitados. Depois desapareceu com os nossos movimentos. Fomos para a tenda. Vestimos os pijamas, e voltei a abrir a porta da tenda. Suspeitava que ela voltasse, e tinha mesmo voltado. Ficámos a olhar. Procurava comida. Consegui tirar-lhe fotografias.
A raposa

Aos 3 anos o Manuel viu pela primeira vez uma raposa ao vivo... ao mesmo tempo que eu, aos 32. Olhando para trás vejo este momento como um privilégio para ele, proporcionado por esta viagem maravilhosa. Quanto à Filipa, é surpreendente a coragem que teve para a fazer, acampando em sítios como este, tendo em conta o seu pequeno trauma com animais. Para ela foi um desafio superado. As bicicletas, do outro lado da tenda, esperavam para nos levar no dia seguinte.

O dia seguinte foi para descansar das emoções da noite anterior, usufruir das paisagens, da albufeira e também da comida da zona da Amieira. Soube mesmo bem!

Paragem para café. Manuel aproveita para ver televisão, com menina local
Construindo a "piscina"


Passeio de barco na albufeira do Alqueva

Restaurante "O Aficionado", na Amieira (bom!)

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